Carol Garcia / AGECOM

Projeto que define atribuições do médico tramita há dez anos no Congresso Nacional | Foto: Carol Garcia / AGECOM

Samir Oliveira

Há pelo menos dez anos, o Congresso Nacional discute a regulamentação de uma das profissões mais antigas do mundo. Única entre as 14 funções da saúde que não possui regramento legal, a medicina está próxima de ver aprovado o chamado ato médico, polêmico projeto que determina as atribuições específicas desse profissional.

A lei divide opiniões em todas as áreas da saúde e coloca os médicos em rota de colisão com profissionais como fonoaudiólogos, psicólogos, biomédicos, fisioterapeutas, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e nutricionistas. Essas categorias acusam a norma de invadir suas áreas de atuação e de tentar colocar a medicina no controle dessas outras atividades.

Do outro lado, os médicos garantem que não avançarão sobre outras áreas do conhecimento e que têm o direito de regulamentar a única profissão carente de uma norma nacional na área da saúde. Enquanto as entidades de classe de cada categoria travam embates e fazem pressão no Congresso Nacional, o projeto avança com distensões e solavancos.

Em 2002, quando foi apresentado pelo então senador Benício Sampaio (ex-PP), o projeto sofreu alterações pela relatora na Comissão de Assuntos Sociais, Lúcia Vânia (PSDB), e chegou à Câmara dos Deputados na forma de um substitutivo. De lá, sofreu novas mudanças e retornou ao Senado na forma de um outro substitutivo e, desde 2009, estava para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – o que aconteceu na última quarta-feira (8).

Desde 2002 até a votação na CCJ do Senado, o texto do ato médico sofreu 18 modificações, fruto tanto de pressões das entidades médicas para manutenção de prerrogativas, como de mobilização das outras categorias para impedir a retirada de suas atribuições. Mas os dez anos e as 18 alterações não foram suficientes para cimentar esse debate, que ainda encontra resistências – inclusive de médicos, que se dividem entre os que acham a lei desnecessária, os que aceitam o projeto como está e os que consideram que já foram feitas muitas “concessões” aos outros profissionais da saúde.

Com o crivo da CCJ, a proposta precisa agora passar pelas comissões de Educação e de Assuntos Sociais antes de ir ao plenário do Senado e, em seguida, para sanção ou veto da presidente Dilma Rousseff (PT). Enquanto as entidades médicas esperam que o texto se torne lei ainda neste semestre, as outras categorias apostam na prorrogação das discussões e ameaçam, inclusive, entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federa (STF) caso a proposta seja aprovada.

No site do Senado é possível verificar uma tabela com todas as mudanças feitas no PLS 268/2002.

Cirurgião-chefe da Rede Sarah é contra ato médico e enfrenta reação da categoria

 O diretor e cirurgião-chefe da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, Aloísio Campos da Paz Júnior, provocou a ira das entidades médicas do país quando resolveu se posicionar publicamente contra o ato médico. Num artigo publicado em novembro de 2004 no jornal O Globo, com o título “Burrice em verde-e-amarelo”, ele disse que o Brasil mergulhará “na Idade Média” se o projeto for aprovado.

“O Brasil mais uma vez fica na contramão de tudo o que está sendo feito no mundo”, escreveu o cirurgião. Para ele, o ato médico “subordina tudo que é necessário para restabelecimento da saúde a uma só profissão” e ignora os progressos científicos em outras áreas da saúde que influenciam na prática médica.

“Um grande número de profissionais de várias especialistas, também formados por universidades, passaram a participar nas várias etapas de avaliação que, em última análise, iriam determinar a ação que procurava a cura”, observou Aloísio.

Foto: Bruno Spada/ABr

Por conta desse artigo, o médico foi duramente criticado por outros colegas. Em outro artigo, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Edson de Oliveira Andrade, disse que o cirurgião estava “propalando bobagens”sobre o tema.

Andrade reafirmou que “nenhum outro profissional diagnostica doenças e indica o respectivo tratamento” e negou que, caso o projeto seja aprovado, o cidadão terá que procurar um médico antes de ir a qualquer outro profissional da saúde. “Propagam tais inverdades aqueles interessados na não regulamentação da medicina, que preferem manter uma área cinzenta de interface entre as profissões, abrindo caminho para o exercício ilegal da profissão e o charlatanismo”, disparou.

Em outro texto, o conselheiro do CFM, José Hiran da Silva Gallo, disse que o artigo de Aloísio Campos da Paz Júnior é de “uma agressividade incompreensível” e que o cirurgião teria se deixado influenciar cegamente “por alguns fisioterapeutas corporativistas, possivelmente frustrados e seguramente raivosos”.

Além do artigo publicado no jornal O Globo, o diretor da Rede Sarah subscreveu uma carta a todos os parlamentares do Congresso Nacional, em nome dos 5 mil funcionários da instituição que representa, pedindo a rejeição “pura e simples” do ato médico.

Estão passando por cima de tudo”, critica presidente do Conselho Regional de Biomedicina

Uma das categorias mais críticas ao ato médico é a biomedicina. Situados numa área de intersecção entre a biologia e a medicina, os biomédicos reivindicam o direito de continuarem realizando os exames anatomopatológico e citológico, que buscam identificar doenças através da retirada de tecidos e células do corpo, respectivamente.

“Estamos capacitados para isso há mais de 30 anos. Não dá para os médicos restringirem essa atribuição só para eles, já temos esse direito garantido”, observa Dácio Campos, integrante do Conselho Federal de Biomedicina e presidente do conselho da categoria na região Sul.

Outro aspecto contestado pela categoria é o fato de o projeto limitar aos médicos a realização de procedimentos invasivos. De acordo com o texto, só o médico poderá efetuar a “invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos”, a “invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos” e a “invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos”.

Para Dácio Campos, essas determinações podem tolher de outros profissionais a prática de acupuntura e de procedimentos estéticos. Até mesmo tatuadores temem não poder mais exercer suas funções. “Temos habilitação para praticar acupuntura e biomedicina estética. Dependendo do procedimento, não tem como não ser invasivo. Até a coleta de sangue é algo invasivo. O projeto define isso de uma maneira muito genérica”, critica o biomédico.

O presidente do Conselho Regional de Biomedicina para a região Sul destaca que não é contra a regulamentação da medicina, mas avalia que, na forma como está, o ato médico engole as outras profissões. “Precisam arquivar a proposta e fazer outro tratando apenas da medicina. Estão passando por cima de tudo”, lamenta.

Para Conselho Federal de Medicina, projeto harmoniza a relação entre os diversos profissionais da saúde

Principal entidade em defesa do ato médico, o Conselho Federal de Medicina (CFM) avalia que o estabelecimento, por lei, de atribuições específicas dos médicos irá “harmonizar” a relação da categoria com as outras profissões da saúde. Para o integrante do CFM e presidente do Conselho Regional de Medicina de Goiás, Salomão Rodrigues Filho, as resistências à proposta são comandadas por “pessoas que não leram o projeto”.

“O parágrafo sete do artigo quarto diz claramente que estão resguardadas as competências próprias das outras profissões. Não há por que criar fantasmas ou ações politiqueiras”, condena Salomão, que também é coordenador da Comissão Nacional de Defesa da Regulamentação da Medicina – instância que une as três entidades médicas nacionais: CFM, Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e Associação Médica Brasileira (AMB).

Salomão Rodrigues Filho diz que opositores veem “fantasmas” no projeto | Foto: Nilson Melo/Cremego

Ele explica que o ato médico respeita a autonomia dos outros profissionais da saúde e define “muito bem” as áreas compartilhadas de atuação. “A medicina faz interface com a maioria das profissões da saúde. Existem alguns pontos cinzentos, mas o projeto define muito bem essas áreas compartilhadas”, defende.

Salomão Rodrigues Filho garante que, se aprovada, a proposta não fará com que os médicos se tornem chefes dos demais profissionais da saúde. O temor é causado pelo trecho do texto que diz que somente o médico pode realizar “a direção e a chefia de serviços médicos”.

“Isso não torna as outras categorias subalternas aos médicos. Mas a chefia dos serviços exclusivamente médicos deve ser feita por nós. Assim como os serviços de enfermagem num hospital são chefiados por enfermeiros”, compara.

O presidente do Conselho Regional de Biomedicina para a região Sul, Dácio Campos, aponta que o projeto não especifica o que seria um “serviço médico”. “Isso precisa ser melhor definido. Postos de saúde, hospitais e laboratórios prestam serviços médicos e possuem equipes multidisciplinares onde qualquer profissional é capacitado para exercer o comando”, observa.

Apesar da oposição das outras categorias da saúde ainda ocorrer, o presidente do CRM de Goiás considera que está restrita a “pequenos subgrupos” dentro das entidades de classe.

“É um absurdo regulamentar uma profissão se referindo às outras”, condena Conselho Federal de Psicologia

Os psicólogos ainda não digeriram bem algumas determinações previstas no ato médico. O projeto reitera, por exemplo, que não é privativa do médico a realização de diagnóstico psicológico. “Não precisa dizer que só nós podemos fazer diagnóstico psicológico, isso já sabemos”, ressalta o conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Celso Tondin.

Ele entende que o projeto irá limitar o trabalho dos psicólogos, pois determina que somente os médicos poderão fazer o diagnóstico de doenças mentais e prescrever os tratamentos terapêuticos. “Uma síndrome é diagnosticada através de um conjunto de sintomas. Não adianta afirmar que o diagnóstico psicológico é nosso e dizer que somente os médicos podem diagnosticar as patologias. O projeto reduz a compreensão da saúde humana aos aspectos meramente biológicos”, critica.

Tondin lembra que as outras 13 categorias da saúde, que são todas regulamentadas por lei federal, não fazem menção à medicina nos seus regramentos. “É um absurdo regulamentar uma profissão se referindo às outras”, compara.

O integrante do CFP explica que o temor dos psicólogos e de outras categorias é que, se a proposta for aprovada, os médicos centralizem o atendimento inicial à população. “O médico irá receber primeiro qualquer paciente e dizer que tipo de tratamento ele deve fazer. Para o cidadão ser atendido por um nutricionista ou um psicólogo, primeiro terá que passar pelo médico. É um retrocesso”, irrita-se.

Tondin prevê que, se for consagrado o entendimento de que somente médicos poderão realizar procedimentos invasivos na pele, haverá “uma guerra”. “O Conselho Nacional de Saúde definiu que todas as 14 profissões da área podem aplicar acupuntura. Se os médicos forem contra isso, irão instaurar um regime de guerra”, alerta.

Sindicato Médico diz que projeto foi “transformado numa monstruosidade” por lideranças de outras categorias

O presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Paulo de Argollo Mendes, considera “uma vergonha” o ato médico estar tramitando há dez anos no Congresso Nacional e diz que a proposta foi transformada “numa monstruosidade” por lideranças de outras categorias da saúde.

Paulo de Argollo Mendes acredita que ato médico apenas orienta o que já é senso comum | Foto: Patricia Comunello/Simers

“O projeto simplesmente escreve na lei o que sempre ocorreu historicamente. Sempre foi o médico quem fez o diagnóstico, quem estabeleceu a terapêutica e quem receitou os medicamentos. Ninguém está inventando a roda”, entende o sindicalista.

Argollo deseja que a medida seja aprovada logo para que se encerre a discussão sobre a interferência do ato médico em outras profissões, um debate que ele diz não encontrar respaldo na realidade. “Por interesses políticos, algumas lideranças geraram ameaças que nunca existiram. É bom que ao final se aprove um texto qualquer e se encerre essa falsa discussão”, interpreta.

Para o presidente do Simers, independentemente do teor da lei, os cidadãos continuarão recorrendo aos médicos quando estiverem com problemas de saúde. “Irá prevalecer o bom senso. Quando a população quiser o diagnóstico de uma doença, irá procurar o médico. O bom senso das pessoas continuará dizendo o que é função do médico e o que não é”, pondera Argollo.

“É um retrocesso e fere rotinas consagradas no SUS”, aponta Conselho Federal de Enfermagem

Categoria em contato diário e direto com os médicos, os enfermeiros também acompanham de perto a tramitação do ato médico no Congresso Nacional. O conselheiro do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Antônio Marcos Freire Gomes, entende que, apesar das modificações já feitas, a proposta ainda “representa um retrocesso”.

O enfermeiro avalia que o texto fere procedimentos que são práticas rotineiras nos atendimentos prestados pelo Serviço Único de Saúde (SUS). “É comprovado, na prática diária no SUS, que vários profissionais fazem o diagnóstico de agravos e instituem medidas terapêuticas de combate”, lembra.

Gomes garante que as demais profissões da saúde estão organizadas para se contrapor ao “lobby dos médicos” no Congresso Nacional, discutindo estratégias de pressão sobre os parlamentares. “Na semana passada fizemos uma reunião com representantes de todas as categorias afetadas pelo projeto. Queremos apresentar uma alternativa que permita que os médicos regulamentem sua profissão sem adentrar nas conquistas efetivadas por outras áreas”, orienta o integrante do Cofen.

“Médicos precisam absorver atividades compartilhadas, mas de algumas coisas não abrirmos mão”, opina Conselho de Medicina do Rio Grande do Sul

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Rogério Wolf de Aguiar, acredita que os médicos precisam se habituar ao compartilhamento das atividades com as demais profissões da saúde, mas ressalta que não dá para abrir mão de determinados aspectos. “A época em que os médicos exerciam sua profissão sozinhos já foi superada pelo crescimento de outras áreas que se destacaram. Compartilhar atividades com outras profissões é uma realidade que os médicos precisam absorver”, entende.

Cremers

Rogério Wolf de Aguiar conta que há insatisfações por conta de concessões a outras categorias | Foto: Divulgação/Cremers

Entretanto, Aguiar aponta que diagnóstico de doenças, tratamentos e procedimentos invasivos são atribuições restritas à categoria. “Não há possibilidade de abrirmos mão disso. As outras profissões se debruçam sobre uma parte da atenção à saúde. Quem está habilitado para fazer o diagnóstico amplo e determinar um encaminhamento é o médico”, defende.

O presidente do Cremers conta que há descontentamentos na categoria por causa das alterações feitas no projeto do ato médico em virtude da pressão de outras profissões. “Algumas especialidades, como a fisiatria, manifestam insatisfação. Consideram que a proposta abre muito espaço para que a fisioterapia divida a atuação com médicos”, comenta.

Para Aguiar, o importante é que o ato médico resguarde as atribuições da categoria diante do quadro de avanço das outras profissões. “Outras profissões pretendem avançar e ampliar suas áreas de atuação. É nesse aspecto que a aprovação do ato médico é eficaz, pois limita pretensões futuras (de outras categorias). É um ponto muito positivo”, comemora.

“Projeto pode tolher nossa autonomia profissional”, alerta fonoaudióloga

Os fonoaudiólogos também estão preocupados com os possíveis efeitos que a aprovação do ato médico terá sobre a categoria. A presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFF), Bianca Queiroga, alerta que a autonomia profissional poderá ser limitada.

“Dependendo de como o texto for interpretado, poderemos ter nossa autonomia tolhida”, critica. Ela explica que o projeto poderá tornar alguns tratamentos “ainda mais inacessíveis” condicionar ao médico o acesso de um cidadão ao fonoaudiólogo.

“A prescrição terapêutica pode ser interpretada como uma atribuição exclusiva do médico. Aí o cidadão só irá ao fonoaudiólogo se o médico julgar conveniente e encaminhar. Não podemos permitir uma lei que crie uma hegemonia e uma hierarquia entre as profissões”, observa.

Bianca explica que não é contra a regulamentação da medicina, desde que ela não fira a autonomia das outras profissões. A presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia diz que é “complicado” submeter conhecimentos técnicos de outras categorias aos médicos. “Passamos quatro anos estudando comunicação humana. No momento em que se pensa em subjugar nossos conhecimentos aos de outra especialidade a coisa complica”, lamenta.

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